sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Videoclipe sem movimento


Ana Luiza Leão e Ricardo Neves em Videoclipe Blues, texto de Leo Lama, direção de Andreah Dorim e Leo Lama. A peça foi montada a primeira vez em 1997 com cenário e telão que exibia videoclipes. Eram várias as marcações cênicas e muitos os movimentos dos atores. Ficou 7 anos em cartaz nas escolas de todo o Brasil. Em 2006 a encenação mudou e os atores passaram a atuar na postura de palco O Ator em Repouso.

Na foto 1, experiências com microfones.

Foto 2: o despojamento perfeito: o anti-espetáculo.

Silueta


Margareth Arrais e Pardal em O Dyabo em Cada Amor, texto e direção de Leo Lama.

O Ator em Repouso em negativo. Ao fundo eram projetadas imagens de Ícones Sagrados.

A - Deus

Patrícia Pichamone e Fábio Araujo em Adeus aos Casais, texto e direção de Leo Lama, sempre com a colaboração de Andreah Dorim.

Postura no palco O Ator em Repouso: os atores ficavam a peça toda nesta posição, mexendo apenas a cabeça.

Coração Abandonado



Felipe Kannenberg e Zuzu Abu em Coração Abandonado pelo Buddha, texto e direção de Leo Lama, com a colaboração de Andreah Dorim.

Foto 1: nos ensaios, ainda com figurinos e movimentos excessivos.

Foto 2: já na postura de palco O Ator em Repouso.

Pensaria

Para mim a inação é a principal categoria ética do nosso tempo. É claro que todo mundo faz coisas, até coisas demais. Mas fazemos como se só repetíssemos ou porque somos levados a fazer e, de repente, hiper-fazer? Isto serve pra pensar na obrigação neurótica de ver todos os filmes, ler todos os livros, ouvir todas as músicas, usar todas as roupas, provar todas as bebidas, drogas, sexos... Será que temos prazer em viver na falta ou queremos nos punir com a culpa por não correspondermos às exigências de hiper-ação do nosso tempo? As éticas tradicionais falavam da ação, mas o que é ação hoje quando a maior parte do que fazemos, dos nossos gestos e atos, é repetição e compulsão, ou seja, fazer por fazer e fazer sem entender o que se faz. Vivemos na hiper-ação, é preciso fazer uma crítica da Inação que poderá nos mostrar que é melhor não fazer nada do que fazer por fazer. A crítica se torna um elogio. É a dialética da compreensão em ... ação ... Márcia Tiburi

Nenhum método. Ainda que a palavra repouso, (re.pou.so, s. m. 1. Ato ou efeito de repousar. 2. Cessação de movimento ou de trabalho. 3. Descanso, sossego, tranqüilidade.), tenha um parentesco com a palavra inglesa stillness, que pode ser traduzida como calma, tranqüilidade, silêncio, o Ator em Repouso, não é uma tradução ou adaptação do método de Tadashi Suzuki, ao contrário, é uma recusa do mesmo, entre outros. O Ator em Repouso não busca a técnica do ator oriental ou ocidental, e nem procura copiar ou se inspirar em suas práticas ou posturas, nem no Butô, nem no Teatro Nô, nem no Kabuki, nem nas artes marciais, nem em Stanislavski, Grotowski, Peter Brook, Eugênio Barba, etc. Mas, se algum parentesco há, é com o Oriente. Eu, Leo Lama, como dramaturgo, me inspiro no homem oriental, em sua filosofia, em sua espiritualidade, e não no ator oriental e em suas técnicas, mesmo que tenha estudado, não praticamente, muitas delas. Quero o interior deste homem, seu modo de usar a mente e não seu corpo.

O Corpo. Os atores do Teatro não devem se mexer. Nenhum gesto, nenhum movimento, a não ser quando indicado pelas rubricas da peça. O corpo vira-se levemente para que o olhar se dirija para onde for indicado. As expressões faciais devem ser mínimas. O corpo não está parado, está em repouso. Pleno de todos os movimentos possíveis. É o eterno porvir. O inconcluso. Os atores, casulos em repouso exterior, tecem suas sedas tântricas no âmago de seus corpos.

Saudade. O Ator em Repouso é o corpo em Saudade. Em Saudade do corpo alheio e do próprio corpo, na verdade, em saudade do corpo primordial, o corpo de argila, o corpo de Adão, o corpo simbólico formador de todos os corpos.

A Voz. O essencial deste tecido é a voz. Os ritmos são guiados pela vibração da voz. Pela projeção, pela modulação, pela emoção que a voz humana pode produzir e principalmente pela musicalidade intrínseca em toda fala. Atuar é vocalizar. Para que se ouça, se diga, se construa essa voz, é preciso silêncio. Harmonia e dissonância é o jogo.Variações. Serenidade e movimento. Suspensão e pulsação. Sístole e diástole. Não suporto mais a música que não é ela em si a cena. É preciso que se pare pra ouvir a música do silêncio. Somos um país inacreditavelmente musical, porém sem educação musical. É preciso que o ator aprenda a se relacionar com o silêncio. Há silêncio? Como conseguir o silêncio? Há barulho em tudo, até mesmo no estar-se quieto. O barulho mais imperceptível é uma barreira a ser transposta. Do silêncio nasce a fala.

Silêncio geométrico. Criar música com as palavras, ou uma música capaz de não permitir ao ouvinte o silêncio psicológico, aquele que o induz a uma “viagem” sua, dispersa, que o impede de ouvir a música e o transporta para emoções baratas, como todas que são derivadas de uma indução psicológica. A palavra deve provocar uma emoção estética. O silêncio é quase impossível para uma mente treinada para fazer barulho, então, que as palavras musicais construam o silêncio a partir de um excesso. A música é uma matemática doce, uma geometrização de melodias. As palavras devem ser segredos que os espectadores queiram decifrar como as mágicas impossíveis de um grande mágico, como as vozes melódicas intercaladas de uma grande sinfonia. Os verbos não devem se abrir com facilidade, como se dissessem apenas aquilo que enunciam. As notas, como as palavras são as construções de uma mandala geométrica baseada em uma estrutura vazia.

O braço amputado. Quem já perdeu um braço, uma perna ou até mesmo um filho, sabe que mesmo não estando o membro, sua presença ainda se faz. Muitos sentem até coceira em um braço amputado. No Anti–método do Ator em Repouso fazemos às vezes complexas coreografias e marcações em uma determinada cena, só para cortá-la depois, e fazer com que o ator fique na mesma cena sem se mexer. Para que a memória energética do que já foram as ações físicas da antiga execução fiquem vibrando no não mexer-se. É a presença na ausência. Decoram-se páginas do texto que depois serão cortadas, após estarem bem fixas na mente do ator. Os silêncios dizem mais quando já foram ditos antes como sendo palavras. A ação mais profunda vem das possibilidades que ficam abertas, depois de cortes de uma cena que foi várias vezes executada.

O ator recadeiro. O recado é a palavra em movimento, é algo a se dar conta, é algo que se transmite: uma canção. A mensagem pode ser o significado íntimo de uma obra, o que a obra quer dizer, diferente do recado, que é o dizer a obra, tentar passá-la tal e qual foi recebida. Decorar e recordar e passar adiante. A oralidade em si já é um recado do que foi pensado. Para o Ator em Repouso, cada fala deve ser uma canção. A canção é a força melodiã que transmuda as palavras, um recado musical.

As falas. As falas são notas em uma partitura e música se compõe com acordo(e)s e harmonias, mas principalmente, com o ouvido. Ouvir a fala do outro, em teatro, não é apenas escutar o que o interlocutor diz. Ouvir a fala do outro já é o começo do dizer da sua fala, é tocar seu instrumento em consonância com as notas do instrumento alheio, é não interromper a fluência musical que a cena propõe, é escutar as pausas, o ritmo, o pulsar que vibra no interior das palavras. As falas devem estar no coração, ou seja, de cor, para que possam ser trabalhadas como sendo dos atores. Os atores devem possuir as falas em seus corações, pensando nisto não como poesia, mas em achar as falas vibrando-as no centro de seu corpo. As falas, cada um possui em seu coração, mas a música é em conjunto. Portanto, o problema não é decorar com musicalidade errada ou desafinada, é não conseguir produzir música com as notas da partitura.

A Ação. A preocupação do Ator em Repouso deve ser exclusivamente com a ação, a ação correta, e nunca com os resultados dessa ação. Não deve deixar que os resultados das ações sejam o seu motivo, nem deve abster-se de agir, ainda que interiormente. Quando não houver ação interior, não há teatro, portanto a cena deve ser cortada.

O Presente e o Futuro do Pretérito. O presente é onde a ação se passa, no aqui e agora, e o futuro do pretérito é onde tudo pode acontecer, a eterna possibilidade, a eterna potência. A ato mata a ação, a teoria conserva a pureza intrínseca em cada possibilidade de agir. Qualquer definição é a morte das outras possibilidades. O Ator em Repouso é aquele que age sem movimento, é aquele que representa em descanso. Em uma época onde tudo é uma necessidade quase bestial de fazer, de mostrar serviço, de se ocupar contra uma solidão crônica, o Ator em Repouso é uma tentativa de resgatar o Ser, soberano de todas as ações. Estar de corpo presente - estar presente no corpo.

Personagem. A busca do Ator em Repouso não deve ser a de construir um personagem e sim a de achar a intenção correta da fala, através de uma produção específica de energia. No entanto, ninguém pode dizer a uma pessoa que a dor que ela sente é mentira, que seus sentimentos são falsos, que sua história pessoal é uma ficção, que toda a sua vida é um simples jogo de posições imaginárias, e esperar com isso que sua dor desapareça, seus sentimentos se transformem, sua história seja reescrita e sua vida renasça. O ego não se desfaz do ego num passe de mágica. Por isso mesmo, o Ator em Repouso encontrará dificuldade em transpor o psicológico dos personagens, podendo então, admitir a psicologia, sem tê-la como fim, tendo sempre o rigor de limpá-la até que não apareça no resultado. Os personagens do “meu teatro” são simbólicos e não psicológicos. É tarefa da travessia simbólica “ensinar” ao ego a plasticidade.

Dizer as Rubricas em vez de cumpri-las: a ironia do Narrador. Os atores devem dizer suas subjetividades (os seja, as rubricas que indicam a ação) como se desmontassem a si mesmos, como se duvidassem de uma possibilidade única, com mistério e ironia. “O que você faria no meu lugar?” A clássica pergunta traz o outro (o espectador) para a cena e “O que eu faria no meu lugar (se eu estivesse aqui)?”, traz o outro de si. Remanejar as emoções. Narrar remanejando. A narração pode modelar a emoção, recordando o futuro do pretérito. Recordar não é voltar ao passado, é voltar ao coração.

Mímica. Na mímica corporal moderna inaugurada por Etienne Decroux o movimento é condensado, enquanto que o espaço poético é expandido. Cenário, figurino, texto, tudo é suprimido para que o ator dilate a sua presença cênica. Teatro, para Decroux, é a arte de ator. “É preciso ensaiar a peça antes de escrevê-la”, costumava dizer, defendendo a primazia do ator sobre o autor. Decroux defendia que o corpo era o centro da expressão. Na hierarquia dos órgãos de expressão, coloca o tronco em primeiro lugar, seguido dos braços e das mãos e, por fim, o rosto. Desenvolve sua Mímica Corporal lutando contra o movimento natural do corpo, que segue as leis cotidianas: o menor esforço para o maior efeito. Decroux inverte a frase e cria o que, para ele, seria uma das mais importantes leis da arte: o maior esforço para o menor efeito. “Se eu pedir a um ator que me expresse alegria, ele me fará assim (fazia uma grande máscara de alegria com o rosto), mas se eu cobrir o seu rosto com um pano ou uma máscara neutra, amarrar seus braços para trás e lhe pedir que me expresse agora a alegria, ele precisará de anos de estudo”, dizia.

Mínima mímica. Entre as várias influências que o anti-método O Ator em Repouso sofreu, a que mais me inspira é a obra de Guimarães Rosa. Um exemplo é o conto “Orientação” do livro Tutaméia. A História do casamento entre Yao Tsing-Lao, virado Joaquim, virado Quim, com Rita Rôla, virada Lola-Lita. Além do conto ser uma maravilhosa metáfora das trocas e influências que podem sofrer as culturas, no caso China x Minas Gerais, por causa disso mesmo, ou seja a orientação ou oreinatalização que a personagem Rita sofre, muito tem a ver com os conceitos que busco. Algumas frases recheadas de música, poesia e neologismos que sintetizam pensamentos complexos como se fossem hai-cais ou koans, ou até mesmo ideogramas, encaixam como luva na essência do que pode vir a ser o Ator em Repouso. Vamos aos exemplos. “Quim combinava virtudes com mínima mímica.” Frase lapidar, que além de descrever hábitos tipicamente orientais, serve-me como modelo de elegância e ética cênica. A perfeição da economia gestual como reflexo de caráter virtuoso do intérprete. “Quim era sábio como o sal no saleiro, bem inclinado. Polvilhava de mais alma as maneiras, sem pressa, com velocidade.” O sal é matéria leve, sutil e saborosa, como assim deve ser a interpretação refinada e irônica do Ator em Repouso, recheando de alma as intenções e em aparente contradição no repouso veloz quase metafísico da vontade e da contra vontade. “Quim era onde em si, no cujo saber de caramujo, ensinado a ser, sua pólvora bem inventada.” Magistral descrição que alude à milenar sabedoria do taoísmo e a invenção da pólvora pelos chineses. Ser seu próprio lugar, ou seja, estar alerta em energia de presença e pronto para estourar em invenção criativa: variação de estado energético. “Sentava-se, para decorar o chimfrim de pássaros ou entender o povo passar. Traçava as pernas. Esperar é um à-toa muito ativo.” Bem, o sentar-se é a própria postura, os pássaros e o povo que passam, são como as emoções que mudam feito paisagem no trem, enquanto o Ator em Repouso sentado no banco do vagão permanece parado, em um esperar esperançoso, como se tudo pudesse acontecer a qualquer momento. Quim, o chinês, “tinha um outro modo de ter cara.” “Pazpalhaço.” Neologismo, que Rita Rôla usa para xingá-lo, palavra valise, que guarda “paspalho”, “paz” e “palhaço”. Podemos dizer que o Ator em Repouso é um pazpalhaço se pensarmos que está em posição de paspalho, ou bobo, como Parsifal, que quer dizer o inocente tolo, aquele que sem querer pega o Graal, aquele que quando se esquece se encontra, sendo o bobo da corte, o único capaz de dizer verdades ao rei. A paz é um estado feminino, de receptividade. O palhaço, e o senso crítico, não criticista, irônico, como quem tem consciência de que cada fala e mesmo a vida dura o tempo de uma gag. “Falar, qualquer palavra que seja, é uma brutalidade?” Pergunta o narrador, imbuído da sabedoria oriental de seu personagem. O que dizer? Falemos do aprendizado de Rita: “aprendia ela a parar calada levemente, no sóbrio e ciente, e só rir... um mecanismo de ciência ou cócega.” E bem filosofa o autor, sintetizando tudo com capacidade ímpar: “o mundo do rio não é o mundo da ponte.” O rio é a vida corrente, com “seu mau-hálito de realidade”, com suas mesquinhezas, entre as quais a resistência à alteridade. Mas existe também “o mundo da ponte” que une os opostos e pode até fundi-los. Neste mundo vivem os Atores em Repouso.

Tai Chi Chuan. E se melancolia e angústia forem energias puras que se apossam do corpo dos atores? Como é um corpo que sente melancolia ou angústia? Em vez da psicologia mental desses estados, vamos trabalhar a energia e o deslocamento da energia. Onde estaria a energia em tal estado, em que parte do corpo? Se no coração, em qual metade? Se no corpo todo, qual o peso disto? Façamos exercícios de ativação do Chi. Abraçando a árvore. Lembremos que abraçando o corpo há um corpo energético invisível, sejamos orientais.

Orientação. O repouso não significa o fim e sim um estágio entre um movimento e outro. Porém, é como se o movimento passado nunca tenha acontecido e no futuro nunca venha a acontecer. O que me interessa agora é a suspensão exemplificada pelo futuro do pretérito. Neste sentido, este repouso, para mim, tem inspiração Taoista: “O Tao é eternamente sem agir, no entanto, tudo é feito por ele.” E o Não-agir (Wou-Wei) de forma alguma é a inércia, mas a plenitude da atividade, aquela que não pode ser elegida, pois uma vez definida, morreria. É uma atividade transcendente e interior, não manifesta, unida ao Princípio, e portanto, supera todas as distinções que vulgarmente se compreende como realidade. Este Não-Agir, eleva esta à sua condição primordial. No entanto, também busquei inspiração na filosofia e no pensamento cristão, mais precisamente em Platão e seu mundo das idéias e em Aristóteles e seu discípulo-tradutor, São Tomás de Aquino. São Tomás fala, dentro da teoria das quatro causas aristotélicas, da ordem de execução e da ordem de intenção: na intenção o fim vem antes do efeito, a causa final fica em suspensão. Seria a eterna potência. Me interessa a idéia de estátua (Causa Formal) a ser impressa no mármore (Causa Material) e não o mármore e nem a estátua, ou a finalidade do mármore (Causa Final). Trabalho com a Causa Formal, ou, platonicamente falando, busco o mundo ideal das essências puras, o modelo de todas as formas. A forma, segundo Aristóteles, é princípio de perfeição que ativa a matéria potencial e define a essência das coisas. Não me interessa o efeito da ação (Causa Eficiente), pois este não exprime adequadamente o ser da causa, porque a perfeição da causa supera necessariamente a perfeição do efeito. Segundo São Tomás, o conhecimento do efeito só conduz ao conhecimento imperfeito e analógico da causa. E há ainda o conceito de motor imóvel: um centro que rege o movimento de todas as coisas, sem nelas participar. A dramaturgia está dentro do representante e não em suas ações físicas.

Poesia. É preciso também abrir espaço para o espectador imaginar. Para mim, este é o dever da arte atualmente, um resgate poético.

Imagens Poéticas. Proponho uma ode à teoria, uma ante praxis. Diz Luiz Bunier: a ação física é a poesia do ator. Digo: a parada da ação física no ator é a poesia para a platéia. O excesso de informação e de facilidades de armazenamento de memória em computadores, agendas e tais, além da maciça carga de informação visual, causa uma inibição na imaginação. O Ator em Repouso é o resgate da imaginação poética. O Ator em Repouso é a busca da interioridade, muito mais do que a imobilidade. A imobilidade é um manifesto contra o excesso, contra a informação excessiva e inibidora da imaginação. A interioridade é a função da própria arte. Resgatar e devolver ao homem comum seu sentido interior de travessia é a função do artista. Duas etapas são fundamentais para esta representação: enriquecer-se interiormente e transmitir, ou compartilhar, esta riqueza.

Necessidade. O Teatro é necessário? Pergunta Denis Guenon, em livro com este nome. E ao longo dos séculos pergunta-se: o que é necessário no teatro? E ainda: a teatralidade é necessária? Diz-se que o teatro é o ator. Filosoficamente, a necessidade significa, antes de tudo, o que tem de ser assim e não de outra maneira. Pode haver teatro sem ator? Eu pergunto: o quê, no ator, é necessário para que haja o teatro? Seus gestos? Sua voz? Seu corpo presente? Suas ações físicas?

Recusa. O Ator em Repouso também é uma recusa contra o adestramento, contra a falta de capacidade dos atores de terem o domínio de sua arte. Cada vez mais esta arte está vilipendiada, vulgarizada, nivelada por baixo, por um gosto popular mediocrizado por campanhas de cerveja, por novelas que traduzem um modo simplista de relações ditado por quem assiste e não por quem cria.

Imobilidade ativa: uma postura. O ator moderno está cheio de informação, ouviu falar de todas as técnicas possíveis de representação e interpretação teatral. Aprendeu métodos, assistiu montagens, observou atores, foi dirigido das mais variadas formas. Transformou seu corpo em objeto-laboratório de emoções e sensações, buscou-as das mais variadas maneiras, seguindo as mais contraditórias instruções, imitando quantidades incontáveis de gestos e movimentos, atuando e agindo em mimeses corporais e apreendendo vias apregoadas como caminhos de salvação cênica. Agora não consegue se mexer. Porém, travado não é corpo, é coisa. Casco de cerveja. Coisificado, ainda vive. Como? Qual gesto seria possível? Qual gesto não seria aprisionado em uma técnica milenar ou moderna? Uma anti-técnica, uma não interpretação, uma representação? Qual movimento físico não seria apenas um atabalhoar-se desnecessário? O quê mimetizar? Mostrar em cena trejeitos e maneirismos alheios como se fosse isso ou aquilo a construção, ou a demonstração de um personagem? Cabe ainda ao ator construir um personagem em época onde todos parecem ser personagens? Qual ação não seria um detrimento de outra? Porém, ele agiria, pois ator é. O Ator em Repouso repousa, age dentro de todas as ações, com esperança de um dia poder recuperar sua dança: a essência do homem de argila: recriação do corpo, templo da alma, receptáculo do espírito. Por enquanto, diz as ações que faria um dia, se um dia fizesse. Nenhuma técnica a lhe machucar o corpo, este território sagrado. Por enquanto, o Ator em Repouso apenas diz, não interpreta. Em um futuro sem pretérito, a busca: o corpo sem ossos, a estrutura vazia.

Esvaziar, subtrair. O que procuro é oferecer ao espectador uma imagem do vazio. Um descanso do excesso. Qualquer misticismo seria uma fantasia. Ver um homem, ou uma mulher, ou melhor dizendo, um representante do ser humano em cena, parado, sem gestos, sem qualquer tipo de movimento externo, de uma certa forma já é um manifesto contra o massacre que o corpo humano vem sofrendo ao longo dos séculos. Desde as imagens de sua pretensa pré-história que o assemelha a um macaco, passando por Auschwitz, até os dias de hoje onde corpos são comparados a produtos de consumo. Tanto as torturas, como as técnicas e posturas desenvolvidas para fazer com que o físico se expresse melhor, acabam saturando-o com tanta informação quanto a que sofre a mente que o comanda. O que mais é possível fazer com este bife sangrado a marteladas? Que o esvaziamento é o cerne da questão, não resta a menor dúvida, no entanto, é preciso clarear o conceito de vazio quando estamos falando de postura em um palco de teatro, para que não se confunda o vazio visual, com um vazio proposto por uma busca religiosa ou filosófica. Estamos falando de arte. Embora haja um parentesco entre esta e determinadas buscas espirituais, essa irmandade se dá apenas na arquitetura, ou seja, no ritual. O efeito do rito são outros quinhentos.

Os Representantes. Com o tempo, quero passar a chamar os atores de representantes, pois ator é aquele que realiza uma ação, o agente do ato, e o representante seria aquele que representaria o ato e não o realizaria. O ator, é a matéria do personagem, mas o representante, além de ser matéria, também é forma. Em Platão, a matéria surge como um ser de natureza plástica, como uma massa capaz de ser assumida por ilimitadas formas, ao copiá-las. A matéria é assim modelável e capaz de imitar as formas. Para alguns, a matéria é puro nada, para outros ela nada mais é do que espaço, isto é, o grande vácuo, que é modelado pelo demiurgo. As formas não pertencem ao tempo e ao espaço, enquanto as coisas sensíveis e materiais a ele pertencem. Por isto o ator comum é diferente do Ator em Repouso, pois o ator comum está atuando o tempo todo, enquanto o representante em repouso está dizendo o que faria, sem atuar e também atuando. Sendo assim, está em que tempo e em que espaço? Poderíamos dizer então que o ator comum tem a forma de Hamlet, e o Ator em Repouso é a forma de Hamlet, porque seria todas as formas em potencial, sendo forma nenhuma.

Presença e Ausência. Qual a importância do ator estar ali, em repouso? Por que não transformar a apresentação teatral em um programa de rádio, onde a única presença no palco seria a voz dos atores, que estariam dizendo falas e rubricas, vindas de caixas de som, liberando, assim, todo o espaço cênico para a imaginação? Talvez porque a presença da ausência crie uma saudade da presença que falta, e o que disso possa surgir, seja o absolutamente necessário e o essencial.

O Schabat. Aquele que quer penetrar na santidade do dia deve, antes de tudo, abandonar o profano comércio ruidoso, deve deixar de estar sob o jugo da labuta. Deve se afastar do grito dos dias dissonantes, do nervosismo, da fúria, da ganância e da traição que o leva a fraudar sua própria vida. Seis dias na semana nós lutamos com o mundo, no Schabat a preocupação deve ser com a semente da eternidade plantada na alma. Seis dias da semana nós tentamos dominar o mundo, no sétimo devemos procurar dominar o eu. Quem não se controla e não se pausa vira escravo. O labor é um ofício, mas o repouso perfeito é uma arte. O Schabat não existe em consideração aos dias da semana; os dias da semana é que existem em consideração ao Schabat. Não é um interlúdio, mas o clímax de viver. A proibição do trabalho e dos pensamentos negativos está, portanto, somada a benção do deleite e a ênfase da santidade. A pessoa não fala da mesma maneira neste dia como fala em outros dias. Pensar em negócios ou trabalho deve ser evitado. O sétimo dia é um palácio no tempo que se constrói. É feito de alma, de alegria e de reserva. O esplendor do dia é expresso em termos de abstenções. Assim como melhor nos expressamos sobre Deus: nunca podemos dizer o que Ele é, mas apenas o que Ele não é. O dia santo é um retiro. O Palco é o Sétimo dia do Ator. O Ator em Repouso está sempre em Schabat.

Minha arte. A arte é filha - histórica e logicamente - do Rito, este sim, dado a nós por Graça, não apenas para impedir que a Verdade destrua a criação - porque o Todo não cabe na parte - mas para prismá-la em feixes de todas as cores a fim de que a luz, vestida de forma, penetre, fecunde e inspire a Existência. O rito é a língua por que fala a Revelação ao coração dos homens, e a arte, a verdadeira, é a sua singela resposta. Para mim a função da arte, em qualquer sociedade que se preze, sempre foi e sempre será a de responder às carências espirituais, ou seja, investigar as necessidades subjetivas da alma humana e elevá-la à sua condição superior.

segunda-feira, 28 de julho de 2008

O Desespelho

O Ator em Repouso é a interioridade, muito mais do que a imobilidade. A pausa abrangente é a faxina do excesso, a limpeza da informação excessiva e inibidora da imaginação. A interioridade vertical é a função da própria arte. Resgatar e devolver ao homem comum seu sentido interior de travessia é a função do artista.

Duas etapas são fundamentais para essa representação desespelhante: enriquecer-se interiormente e transmitir, compartilhar, refletir tal riqueza.

O exercício consiste em ficar em frente ao espelho imaginando sua interioridade ascendente. “O que faço dentro?”, "Até onde vai o meu ser?". Inibir qualquer psicologismo, incentivar imagens. Criar energias no corpo tranqüilo:reflexos do interior.

Aparente contradição: o ator é aquele que age, quem está em repouso está em não movimento.

Agir é dentro.

Resgate

“O repouso não significa o fim e sim um estágio entre um movimento e outro. O representante no palco, assume uma postura como se o movimento passado nunca tenha acontecido e no futuro nunca venha a acontecer. O que me interessa agora é a suspensão, exemplificada e imaginada pelo futuro do pretérito.”
“É preciso abrir espaço para o espectador imaginar. Para mim, o papel da arte, atualmente, deve ser o resgate poético.”